quinta-feira, dezembro 14, 2023

Sobre a minha poesia - por Henrique Manuel Bento Fialho

 Dois livros de António Ferra , próximo convidado de Diga 33 – Poesia no Teatro. Dia 27, às 21h30, na sala

 Estúdio do Teatro da Rainha.

Dois livros bastante diferentes um do outro, publicados ambos este ano: “A Poesia Ri Unida” (Eufeme, Maio de

 2022) e “Lengas e Narrativas” (Edições Húmus, Junho de 2022). Comecemos pelo primeiro. Tal como o título

 indica, num humor desimportantizante característico do autor, trata-se de uma reunião, não da obra anteriormente

 editada em livro, mas de poemas dispersos por revistas publicadas entre 2009 e 2021. A excepção é um inédito

 intitulado “Dores”, poema pungente em que o mal-estar contagioso da actualidade vem à tona com fúria

 desmedida: «e eu sem potência para apagar filhos da puta» (p. 37). Não é comum nesta poesia temperaturas

 coléricas tão elevadas, sendo mais frequente o recurso ao riso enquanto sabotagem da realidade decadente e de

 um quotidiano pulverizado de personagens por vezes picarescas, noutras ocasiões risíveis, amiudadamente

 desvalidas. Portanto, a poesia que ri neste volume transborda os domínios da ironia e da sátira reconhecíveis

 noutros momentos da obra de António Ferra (n. 1947). Mantém-se, no geral, a paisagem suburbana enquanto

 palco privilegiado das observações do sujeito poético, mergulhado num “modo funcionário de viver” onde

 recolhe quadros de uma actualidade estrangeirada. O teatro é o da «tirania / num campo de refugiados

 suburbanos» (p. 11), por vezes em poemas sequenciais que retratam com linguagem militantemente coloquial 

«o constrangimento dos sonhos, / a severidade das sombras» (p. 48).

Dá-se especial atenção nestes poemas aos pobres, aos excluídos, aos exilados, aos humilhados e ofendidos, a essa

 massa de gente infinda usada e usurpada pelas forças que dessa gente se servem esgotando-a, tornando-a

 impotente e incapaz. É curioso, mais ainda pela dispersão inerente ao conjunto, como em diversos destes poemas

 surge essa imagem de fraqueza que vai do sentimento de «culpa de não combater» (p. 11) à falta de «voz para

 gritar a injustiça» (p. 48), desembocando no apelo quase desesperado do poema “Contaminação”: «não feches o

 riso / que se abre nas tuas mãos abertas, / não feches o grito de revolta / quando a janela se abre aos odores de um

 fogo extinto» (p. 52). Uma dúvida a esclarecer: o riso é arma ao serviço da revolta ou solução para a impotência?

Bem diferente, em todos os aspectos, é o segundo livro acima aludido, introduzido por uma explicação prévia à

 laia de prefácio: «Trata-se de poemas com deliberada intenção de trazer à luz os mais sombrios actos criativos —

 e caritativos — das palavras, dançando ao ritmo cardíaco dos versos estampados, não negando, todavia, a forte

 influência de uma corrente barroca, e neoclássica, surrealmente presente nos critérios de recolecção dos versos

 que integram a antologia “lengas e narrativas”». Neste caso, o espaço de representação confunde-se com a pura

 experimentação formal. Mais maneiristas do que barrocos, estes poemas afirmam-se pelos desequilíbrios, pelos

 exageros expressivos, aqui grotescos, acolá burlescos, gozando de uma variedade (in)formal que vai da

 redondilha à canção. São experiências lúdicas com palavras, a linguagem poética cedendo ao gozo dos efeitos

 fonéticos — «a salsugem dos barcos / a penugem dos braços» — e polissémicos, jogo que não prescinde do seu

 inventário intensivo de caricaturas: «o pobre de porshe» (p. 10), «o rico sem cheta» (p. 12), «os ais obscenos / de

 suínos urbanos» (p. 31), «o mendigo enganado / o bardo e o frade / de cotão no umbigo / e espinho do cardo // o

 carneiro inchado / a donzela porreira / de seio fanado / e liga de freira // o cilício de nastro / o amante filtrado / o

 cu de alabastro / da alcoviteira» (p. 41).

Ao barroco foi António Ferra buscar certa pompa para a desmontar e desfazer ironicamente, nomeadamente ao

 minar modelos métricos, ao grafitar o luxo das imagens com o corriqueiro, apostando em conceitos rebuscados e

 títulos extensos: «de autor anónimo (sec. XVIII) publicado na Gazeta «O Furjão» em depósito na biblioteca da

 Junta de Freguesia de Albergaria de Loivã» (p. 33). Tudo isto é escárnio da pompa e da circunstância, dos efeitos

 supérfluos e palavrosos, da cagança espaventosa e da solenidade que, em pleno século XXI, se conserva intacta

 no espírito e nos comportamentos de uma horda de artistas eximiamente distribuídos pelas diversas instituições

 nacionais. Fique, a título de exemplo, a «efémera fama de um opinion maker»:


a efémera fama

tua alma aclama


na tua lama

a tarântula branca

anémona plana

numa feira franca


tua alma acalma

a efémera fama

abre o melodrama

alimenta a chama

da boca que trama


tua alma aclama

a tua boca brama

tua efémera fama


quinta-feira, novembro 16, 2023

distância - plaquete 2023



 


quinta-feira, abril 13, 2023

A leitura de Constantino Morais



Caro amigo António

Devo confessar que fiquei deveras surpreendido com “ a primeira pedra”. Para mim foi inesperado descobrir esta tua faceta, pois só conhecia, e já me tinha acostumado, à tua habitual mordacidade, ao teu espírito caustico e sentido crítico, à ironia e ao teu humor na observação e vivência do quotidiano.

Mas, ao ler o teu livro, tive a estranha sensação e a emoção de quem visita uma exposição, como se cada página fosse um quadro ou uma peça escultórica de um museu ou de uma galeria de arte, onde se conta a história do Homem ou da Humanidade, representada no “EU” poético-narrativo, através de um percurso aparentemente cronológico e numa perspetiva evolucionista/darwinista que vai transmitindo ao leitor as mudanças e alterações sofridas e vividas ao longo do tempo na sua relação com o mundo.

Todo o teu livro é um belo proso-poema assente na metáfora da pedra onde de forma subtil abordas vários temas essenciais da vida e da evolução humana.

Muito mais se poderia dizer na sua análise, mas não me cabe a mim fazer isso.

Parabéns por este teu trabalho, é excelente e merece ser conhecido.

Se errei na análise superficial que fiz e falseei a interpretação e o sentido do teu texto agradeço que me digas francamente, por favor, pois toda a análise pode ser subjetiva.

abraço

Constantino 

 

quinta-feira, março 23, 2023

FUMO - leitura de José do Carmo Francisco


 

sábado, setembro 24, 2022

A leitura de Lberto Cruz

 

 


De uma elaborada mas fingida erudição e de um oportuno e propositado plebeísmo, ressalta em boa hora este recente livro de António Ferra: lengas e narrativas (ed. Humus).

  Mas em vez do tom severo e sorumbático manifestado pelo outro,o poeta  António Ferra opta por um tom aparentemente de paródia  mas repassado de ironia e com alcances vários que é necessário ler e reler para um melhor entendimento da poesia posta  em circulação.

Projecto novo e salutar este livro de António Ferra é um bom desafio para os nossos críticos

literários. 


sábado, julho 09, 2022

lengas e narrativas


 

Este livro de poemas oníricos deve-se a uma exaustiva recolha

de António Ferra.

Com efeito - ou mesmo sem efeito - este poeta com sagrado coração

movimentou-se entre a Torre do Tombo e a Pastelaria Versailles,

tendo passado ainda longas horas de investigação no ex-tinto Café Lisboa.

Trata-se de poemas com deliberada intenção de trazer à luz

os mais sombrios actos criativos- e caritativos - das palavras,

dançando ao ritmo cardíaco dos versos estampados,

não negando, todavia, a forte influência de uma corrente barroca,

e neoclássica, surrealmente presente nos critérios de recolecção dos versos

que integram a antologia lengas e narrativas.


Os tipógrafos, editores e livreiros



A Poesia ri unida lida por José do Carmo Francisco


Clicar na imagem para ler

 

sábado, dezembro 04, 2021

um de lito que cometi


 

sexta-feira, setembro 03, 2021

Um dia na eternidade de Amadeu Baptista




 

    Revisitei agora alguns recantos da cidade onde nasci, através da leitura da poesia de Amadeu Baptista: «Um dia na eternidade».

    Tenho um sentimento contraditório em relação ao Porto, onde vivi com continuidade até aos dezoito anos. Sentimento do adolescente e do jovem adulto que percorria muitos dos lugares mencionados no livro deste poeta, mas também outros lugares dos rituais da minha iniciação, livrarias, como a Divulgação, o TEP, o Cineclube do Porto, o cinema Batalha, a Árvore, a galeria Alvarez, o café S. Lázaro e a Esbap…, para não ficar apenas circunscrito às sandes de presunto do Louro, à francesinha da Regaleira, aos tascos da Travessa dos Congregados, ao clima tedyboyesco à volta da Xai-Xai, ou aos bailaricos de garagem.

    Não tenho nenhuma saudade mórbida da cidade, mas mantenho uma certa dose de ternura pelo Porto, com família já quase toda desaparecida, e onde sobram ainda alguns amigos que conservo da infância e adolescência. Como me dizia um amigo que, tal como eu, deixou o Porto e se fixou em Lisboa «hoje era incapaz de viver no Porto». Ambos interiorizámos outros modelos, outro modo de estar e construímos família e amigos, ou seja, tudo o que torna impossível um regresso utópico ao granito húmido nesta fase da vida.


    A leitura de «Um dia na eternidade», levou-me a reler a cidade, mas também e a reler Amadeu Baptista onde reencontro a matriz da sua obra - a perda como ponto (ou porto, ou Porto) de partida para a interrogação sobre o enigma da poesia e da vida, os bons e os maus objectos da infância: «a ver o rio ao longe/e a lembrar-me do que foi a minha infância...», «mas era a língua de areia do cabedelo que me fascinava,/aquele surto de enigmas suspensos sob um céu sem refúgio». E isto a par do pormenor picturesco da dona adélia que «segurava na boca/uma multidão de alfinetes, que depois espetava/numa pequena almofada de veludo, todos em fila,/todos meticulosamente acomodados».

    Amadeu Baptista é sobredotado na sua agilidade poética, mas faz jus ao próprio labor, grande parte das vezes numa compulsão obsessiva da escrita no seu lado de poeta artífice «o poeta trabalha, mas não é o encarregado da obra,/ é antes serralheiro, estivador, escrivão das devassas,».

    O sentido da perda na sua poesia manifesta-se quase sempre através do afastamento/desaparecimento da mulher idealizada, que partiu: «por tanto te querer e não saber de ti./vou-me perder. o que queria era voltar ao número setenta/ e oito da rua monte dos judeus, voltar sessenta anos atrás,»

    No entanto, a memória do passado é motor de determinação e esperança na imagem que nos dá da poesia e da vida, «vem-nos tudo à memória, ainda que a ânsia/seja pelo que há-de ocorrer, por tudo o que sabemos perdido/ e queremos reencontrar neste caminho, em certo fio de água,/em certo campo aberto para que tudo se possa reconstruir a partir de nada,»

    De resto, o poeta Amadeu consegue interligar o espaço-Porto ao espaço-eu-poético, e a inquietação demonstrada ao longo das páginas mistura-se com uma cidade que para si perdeu referentes, embora conservando ainda os seus lugares emblemáticos, pois muita vida se conserva na cidade conservadora ao lado da cidade de Gaia, onde se continua, atravessando o rio, e onde Amadeu Baptista tem passado a maior parte da sua vida em interrogações que fazem lembrar questões levantadas por Manuel António Pina, que ele bem refere neste livro: «(MAP) Porquê a poesia/ e não outra coisa qualquer:/ a filosofia, o futebol, alguma mulher?»

    Ai da cidade que não queira ler este livro do Amadeu Baptista!

    Ai de quem não possa, através destes versos, confrontar-se com o seu passado - ou presente - onde se lê a identidade da pessoa e do velho burgo em imagens de uma grande intensidade: «quem sou nesta cidade? o que lhe devo para nunca me dar nada/ além dos respingos de luz que se levantam/sobre a pena ventosa, os caldeireiros, a sé?»

    São escassas as minhas palavras para falar da poesia dos outros. Socorro-me de uma selecção subjectiva de palavras e de versos, de momentos, de imagens, de acontecimentos. Felizmente não sou crítico encartado, aqueles a quem tantas vezes censuro por analisarem um livro quase só através de transcrições. No entanto não faz sentido omitir os últimos versos do livro «lembro-me, lembro-me. lembro-me de tudo, lembro-me de estar cansado / e de agora acabar o dia em que escrevi, completamente exausto,/esta eternidade.» Assim o

    poeta nos deixa com o peso da memória motora.

    E criativa.


    Transcrições, ou recortes, não são possíveis para escrever sobre a participação de Jorge Velhote neste livro, através do jogo a preto e branco das suas fotografias. Não, não se trata de um livro «turístico», não há fotos do Palácio nem da Rua Escura. Há a interioridade do poeta-fotógrafo motivado pela leitura e conhecimento da pessoa Amadeu. São «derivas pessoalíssimas», como lhes chamou. Não o conheço tão bem, como conheço o outro poeta, mas interagimos, estou atento à sua atitude perante a poesia e as imagens. Neste caso, a atenção já vem de trás, a primeira vez que o li o «fotógrafo» em versos foi precisamente numa belíssima antologia de poesia - «Ao Porto», (ed. D. Quixote, 2001) - onde também participei. Dizia ele que «as casas envelhecem junto ao rio» e fala de «O fim dos dias preguiçosos contando histórias pelos cafés». Lembra-me a cultura dos cafés do Porto e a passagem em que Amadeu Baptista fala com alta precisão dos cavalos da praça D. João I, em frente ao café Rialto onde tomava um pingo, ainda em garoto. Lembra-me a célebre fotografia do grupo de escritores do Café Diplomata (1981) que eu gostaria de ter integrado, mas nessa altura já tinha batido as asas para outros voos. Alguns figurantes aparentemente desvalorizaram a sua aparição naquele grupo escultórico fotografado, mas hoje sabem bem que não estiveram ali por acaso. Ao Jorge digo que os amigos dos meus amigos meus amigos são. E, entre muitos outros capturados nessa fotografia, lá está o Amadeu Baptista e o Mário Cláudio, cuja homenagem ao seu percurso literário foi comissariada, em 2019, pela entrega e competência do Jorge Velhote, na Cooperativa Árvore.

                   Aos dois poetas, o prazer do encontro 

                    e reencontro nas palavras e imagens.



                                               foto de Jorge Velhote

quarta-feira, maio 12, 2021

Estrada de Cinza,(Eufeme, 2021)



 

terça-feira, fevereiro 09, 2021

 

POEIRA ESCURA, de Amadeu Baptista, é uma espaço de luminosidade e lucidez poética, da sua vivência pessoal traduzida nos sonetos que trabalha como lenhador que escacha a madeira do poema. Este livro, afinal a metáfora que nasce logo no segundo verso «meto-me a lenhador na tarde densa» é o percurso continuado da realidade que constrói ao longo da sua obra. É o confronto com a realidade pandémica que nos envolve, pano de fundo deste livro, e que vai muito além das viroses e da poesia de circunstância. Porque não é fácil, nos dias de hoje, escrever negando a evidência, «este pretérito imperfeito que não se saberá como no futuro conjugar». E Amadeu não quer viver nas «águas negras e silêncio», como diz num verso. Esta poesia, apenas escura na aparência da poeira, mergulha no brilho da corrente contínua da sua obra, coerente e identitária: a denúncia do absurdo, da arbitrariedade que remonta à infância (evocação da ausência de Mãe, primeiro verso do livro).

POEIRA ESCURA é um exercício activo da solidão, onde todavia sobressai a crença de que «Tem de haver um momento em que a esperança/Volte e o terror se vença.»

Não sei porquê, veio-me à ideia um verso seu de 1985:

«A ave da luz na manhã incorrupta»

sábado, setembro 26, 2020

Clara em Castelo, a leitura de Liberto Cruz

 

C L A R A E M C A S T E L O




Sabendo que a poesia está na rua, António Ferra partiu afoitamente ao seu encontro. Mas não seguiu só. Enfiou na desprendida mochila diversas paletas, escolhidas árias e restritas frases, recolhidas todas elas, com ironia e feroz doçura, na toca do quotidiano. Daí a oposição entre duas linhas de conduta, que não chegam a enfrentar-se porque se completam, se contrariam e aparentemente se distanciam. Batidas em castelo as claras ora sobem ora baixam, mas nunca desiludem porque conservam uma textura sólida eivada de uma inquieta amargura, de uma lúcida visão das coisas e das gentes , que um humor sadio e pertinente procura atenuar como se necessário fosse.

Sintra, 26 de Setembro de 2020.

Liberto Cruz

quarta-feira, julho 08, 2020

Clara em Castelo lido por AMADEU BAPTISTA


Amadeu Baptista


Novo livro de António Ferra, ‘Clara em Castelo’, editado pela Douda Correria. Trata-se de um conjunto de poemas que reafirmam a pujança do autor, que, como os poemas do livro denotam, não abandonando a vertente satírica de livros anteriores, desta vez se amplia numa outra densidade poética, que, na minha opinião, se ergue através de um expressionismo corrosivo e corruptor. O quotidiano que se lê nesta obra está contagiada pelo vírus de uma doença visceral, que tudo contamina, inclusivamente a própria linguagem, fazendo, inclusive, da desconstrução da língua uma arma de leitura da nossa contemporaneidade e, diria, de merecido e devotado contra-ataque, exactamente como é de esperar de um poeta que não se rende, não se vende e não vacila. Uma tiragem de 50 exemplares mostra a que ponto caiu a actividade editorial deste país, que, no entanto, se obstina em fazer contínuas cedências ao que não merece difusão e muito menos publicação. Guardarei o meu exemplar religiosamente, sorte de quem teve acesso a esta pequena jóia, este pequeno, grande, doce veneno.

quinta-feira, junho 25, 2020

CLARA EM CASTELO







Escreve o Amadeu Baptista, poeta e amigo que muito admiro:

Novo livro de António Ferra, ‘Clara em Castelo’, editado pela Douda Correria. Trata-se de um conjunto de poemas que reafirmam a pujança do autor, que, como os poemas do livro denotam, não abandonando a vertente satírica de livros anteriores, desta vez se amplia numa outra densidade poética, que, na minha opinião, se ergue através de um expressionismo corrosivo e corruptor. O quotidiano que se lê nesta obra está contagiada pelo vírus de uma doença visceral, que tudo contamina, inclusivamente a própria linguagem, fazendo, inclusive, da desconstrução da língua uma arma de leitura da nossa contemporaneidade e, diria, de merecido e devotado contra-ataque, exactamente como é de esperar de um poeta que não se rende, não se vende e não vacila. Uma tiragem de 50 exemplares mostra a que ponto caiu a actividade editorial deste país, que, no entanto, se obstina em fazer contínuas cedências ao que não merece difusão e muito menos publicação. Guardarei o meu exemplar religiosamente, sorte de quem teve acesso a esta pequena jóia, este pequeno, grande, doce veneno.

quinta-feira, outubro 31, 2019

Periferias da Luz







É um incómodo tão grande a ausência de
flores, mesmo aquelas em que não reparamos, porque são
politicamente irrelevantes.
Pensando bem, é impossível encontrar lugar para
estacionar os automóveis de tantas habitações
a que chamavam fogos mesmo que não ardam.
Mas aquelas fachadas lisas, só com janelas planas, são
a angústia de existências bloqueadas,
a angústia de não ter espaço para existir e apenas sonhar
com rosas de jardim.
Não há zonas de varandas com sardinheiras pendentes
para aliviar o peso dos dias pagos a crédito.


quinta-feira, junho 20, 2019

BLUFF

Sobre estes bluffs da vida, clique-se aqui.



De toda a água me rio

Graziela precisava de uma certidão de emagrecimento, documento imprescindível para voar low cost. A senhora do balcão de atendimento sugeriu-lhe que fizesse tudo online, e que comesse apenas legumes, uma só peça de fruta, duas bolachas integrais e, sobretudo, que bebesse muita água, toda a água de um rio para perder o peso dos dias e das noites e para expelir na urina os abusos que sofria.
E que voltasse ao fim de cinco dias inúteis.


[- Já não faço nada online, é tudo bluff, desde que nasceu a minha filha deixei-me disso, nem mesmo sexo virtual, tenho medo de engravidar outra vez.]


terça-feira, outubro 23, 2018

JÁ PRÓXIMO DOS ANJOS


Posso até enumerar os nomes das personagens que encontrei neste percurso:

o gajo do copo com quem bebi vinho branco perto do Chile – Daniel Moreira Nunes
a miúda que ia sendo atropelada – Raquel Barros da Silva
o que tinha ido a Alverca ver a tia doente – Rafael Cruz Monteiro
a tia doente - Eulália Monterio de Sousa
a miúda gorda – Ana Maria Barbosa
o que podia muito bem ser avô dela – Armando Morais Ferreira
um dos que tinha a boca colada a outra – Gabriel Sá Henriques
a outra –Deolinda Cunha Lopes
o mecânico e bate-chapas – António Jorge Martins
a velha ligeiramente magra – Isabel Maria Castro
o que se envolveu com outro numa discussão no metro – Carlos Manuel Almeida
o outro – Joaquim Silvino Antunes


terça-feira, maio 09, 2017

Dos livros levanta-se um pássaro



Perdi um pedaço de terra 
com árvores milenares e rios à alegria.
Mas ainda não desisti da escalada da montanha
 com cordas de seda fina.

 Agarro-me às pedras, seguro-me às giestas,
 suspenso das nuvens pelas minhas mãos
 por onde ainda escorre o álcool da terra.

.....................................................................

A gasosa que eu bebia em miúdo
é que era boa,
cheia de gás e açúcar, a saber a limão.
Ali estava a natureza crua,
plena de sumo a transbordar de futuro.

Quando se abria a garrafa,
abria-se o mundo em bolhas de sol,
ficava frescura nos lábios sedentos de combates
sem precisar de punhais para vencer.

Ainda hoje posso fazer aquela festa
e dançar com uma coroa de flores na cabeça
como um rei de nada à beira mar.





quarta-feira, abril 13, 2016

Fugindo de Todos os Fogos


Publicado em Março de 2016.

São histórias em prosa poética, narrativas mais ou menos curtas

                                  Corrida de cão

Só quando regressei do medo das cobras e da noite sem estrelas é que reparei no cão. Nunca tinha visto um cão correr tanto, um rafeiro, como se fosse um galgo perseguindo uma pele de coelho puxada por uma máquina. Corria atrás de um carro, um Renault 5 TL, que devia ir mais ou menos a sessenta, o que não é muito. Mas para um cão é uma velocidade de Ferrari. Parece que o dono se tinha esquecido do animal, e aquele cãozito branco quase voava, com uma força interior que o fazia lutar assim até ao infinito para ter um carinho e um osso.
Ao longo da avenida, paravam pessoas para ver o espectáculo. Mas apenas durante uns segundos, pois a corrida louca passava num relâmpago. Só dei por isso, porque ia mesmo atrás do Renault e do cão, num Toyota de um gajo meu amigo do tempo da tropa, que parecia insensível à cena. Cheio de pena do bicho, desatei a roer as unhas da mão esquerda. Veio-me à cabeça uma lembrança de Moçambique, uma outra corrida, a de uma hiena malhada a perseguir um mabeco que acidentalmente se afastara do seu grupo.
Do rádio do carro saía um blue da Billie Holiday, cujo ritmo contrastava com a tal corrida louca. Entretanto começou a chover e o cão continuava a perseguir o carro, que abrandara numa passadeira. Logo a seguir, a chuva misturou-se com granizo, uma saraivada que fazia tambor do tejadilho, qual Billie Holiday, qual quê, só se ouvia o matraquear das pedras de água congelada.

O carro reduziu a velocidade com o granizo que começava a acumular-se nos passeios. E o cão, já sem forças, patinando repetidamente nas bolinhas de gelo, continuava ainda a correr atrás do carro, para depois cair e morrer exausto na maior corrida contra o abandono que vi neste mundo quando se perdem as matilhas.                                         

terça-feira, fevereiro 04, 2014

Retratos de Nós

              




segunda-feira, dezembro 23, 2013

Mon Oncle


Às sete horas, arrumava os livros de deves e haveres na secretária, cobria a máquina de escrever com uma capa de pergamoide e saía entre até-amanhãs e brejeirices de ocasião, sem contabilizar as beatas num cinzeiro esmaltado. 
Quando chegava à rua, olhava as montras acesas e distraía-se no recorte de certas árvores, numa memória de infância guardada em arca d’água.» 

(AF - adaptação de fragmento de «Bio grafia»)






Fotografia do meu tio João Oliveira, contabilista - guarda-livros, uma interessante designação - que faria hoje anos (não sei quantos). Além de meu grande amigo era uma figura notável, a quem passei a chamar o alegre Humphrey Bogart.

segunda-feira, abril 01, 2013


        mário                                                             a Mário Viegas

                                                                                  em 1 de Abril de 1996



estou ouvindo a tua voz, mário

aquela voz produzida numa estrada, tão clara

a voz que não deu tréguas ao mau gosto

ao impropério encenado


viegas exilado no tempo e no espaço

confiante no sorriso e no abraço

uma divisa ou galão

quando alferes apareceste numa tela

fardado a militar pelo poema


eu queria agradecer-te, mário

a inteligência das palavras que me deste

pobre rei dom joão sexto

que nem sequer no palco foi  neutral


na garganta  no olhar  no movimento controlado

espontânea e falsamente natural

é a coragem de dizer e ser desdito

por quem te viu alguma vez naquela sala

do púlpito falando a toda a gente

fazendo dos sons um grito rouco

sem o temor de ser o mau da fita


tu é que sabias, mário-mário,

que a força das palavras que usavas

dava vida à morte dos poetas

candidatos a essa eternidade

na lucidez excessiva dos teus gestos


tu é que sabias, mário.


António Ferra